terça-feira, 12 de abril de 2016

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves



   O resto da vida passou-o o fidalgo a exercer, por vezes, altos cargos da governança melgacense como vereador mais velho e juiz pela ordenação; a rememorar os feitos da sua carreira militar, único tropa entre várias gerações de letrados; a olhar pelos seus interesses, emprestando dinheiro a juro a uns, dando quitação a outros, comprando leiras e campos e montado numa ou noutra freguesia do termo; a sonhar com a aquisição das terras e monte da Quinta de Carvalho do Lobo, uma boa peça, ainda hoje na posse de descendentes seus e que o filho havia de adquirir à família de Soengas por seiscentos mil réis e sobretudo a criar a numerosa prole e a incutir no espírito moço do seu primogénito como se amava Melgaço e se defendia sempre a liberdade. Não foram vãos os esforços, porquanto este seu filho foi um acérrimo partidário de D. Maria II, um hábil político local, um dedicado provedor da nossa Misericórdia desde 1845 a 1848 e um progressivo presidente da Câmara Municipal, em cujo edifício faleceu de morte repentina, em plena sessão do Senado por ele superiormente dirigido.
        Em 1808, no estado de solteiro, com trinta e três anos de idade, vivia nesta vila o Dr. Miguel Caetano Torres de Araújo, um dos entusiastas revoltosos contra o domínio dos franceses, que naquela manhã também passou pela casa de ao pé da Matriz. Quem era esta gentil figura de conjurado? Em coisas do tribunal vemo-lo nomeado, por vezes, tutor de menores ou curador de ausentes; em 1809 topámo-lo depondo como testemunha nos autos de justificação de nobreza de António Luís de Araújo Cunha Pereira da Rosa, da Casa da Gaia; encontrámo-lo em muitos actos religiosos, mas em nenhuma dessas passagens se encontra declinada a sua profissão. Se o seu nome, só, bastava para a identificar, para o individualizar numa terra tão pequena e de tantos doutores, o facto é significativo da sua popularidade, quiçá devida à prestação dos seus bons serviços. Uma tradição colhida na Calçada, há uma dezena de anos, de pessoa ajoujada com mais de dois carros e já falecida, o deu como o boticário de São Julião. E, efectivamente, neste sítio ainda hoje se aponta para a casa da botica; mas não foi boticário, esse melgacense, nascido intramuros, na rua Direita. Foi advogado. A tradição, porém, não é de todo falsa e há um fundo de verdade.
        Ali teve a sua botica outro Torres de Araújo; nanja o advogado; mas, sim, o seu irmão João Manuel, falecido em 9/8/1849, na casa de suas tias Vitória e Maria Joaquina, deixando um filho ilegítimo a ganhar a vida no Rio de Janeiro. O outro Torres de Araújo, o revoltoso, foi advogado e distinto. Denunciaram a sua profissão a destrinça do foro do prazo do Estar, chamando-lhe bacharel e o escrivão Tomás José Gomes de Abreu, chamando-lhe doutor e escrevendo a palavra advogado numa procuração apud acta ([1]) para o licenciado intervir num processo.
        Defendeu muito réu; expôs primeiro os factos e depois o direito aplicável à hipótese em muitos libelos; na sua casa de São Julião abafou questões sem se tornar precisa a intervenção dos juizes ordinário ou de fora e a muitas mais pôs um corucho extra judicial, levando os tabeliães a lavrarem escrituras de conciliação e bom entendimento entre as partes.
        Por lá passaram a viúva Maria Rosa Davila e sua irmã Isabel Maria, com a anuência do marido desta, Manuel de Caldas, todos do Barral, para intentarem acções por causa dos prazos ficados na herança de Manuel Luís de Sousa e Castro, do lugar da Nogueira, termo de Paderne. Ali se reuniram Gregório Ventura Meleiro, mulher, e muitos outros para venderem uma casa na Assadura ao comerciante José António de Castro, que, a pouco-e-pouco, foi comprando terrenos em redor até formar uma pequena quinta.
         Por vezes à sua casa foram os tabeliães lavrar escrituras em que interveio apenas como procurador, como quando agiu em nome de D. Ana Joaquina de Azevedo de Ataíde de Menezes e do filho, Joaquim de Vasconcelos, da Quinta de São Pris, termo de Ponte da Barca, para vender a Francisco Luís Esteves, do Vale, a quintazinha da Barca, sita em Chaviães, junto ao rio; em nome de seu cunhado, D. Pedro Vasques de Puga, da quinta da Moreira, em Cecliños, para quem comprou muitos bens e entre eles um mês e uma feira, a do dia 9 de Abril de cada ano, do direito da travessia da barca do Louridal, ou em nome do «Ex.mo José de Vasconcelos Azevedo Ataíde Menezes e sua mulher, Ex.ma D. Carlota Amália de Passos Vasconcelos, Conselheiro de Sua Majestade e Desembargador da Casa e Relação da cidade do Porto», para vender as casas e socalcos juntos, onde mora hoje o autor, a quem, a seguir, as vendeu ao avô materno do mesmo.
         Conhecem-se bastantes trabalhos jurídicos: tanto petições e réplicas, como contrariedades e tréplicas, todas salpicadas de iniciais de palavras, tão em uso no seu tempo. Há mesmo processos completos trabalhados por este advogado e um deles, aquele em que foram seus constituintes os autores Leão José Quintela, do Telheiro, de Rouças, e a irmã, Maria José, das Várzeas, da Vila, é bem volumoso e prenhe de incidentes.
           O Dr. Miguel Caetano cursou em Coimbra a Faculdade de Direito à custa do esforço dos seus, mas fez-se homem de leis e impôs-se à sociedade melgacense a golpes de inteligência, graças ao seu espírito lúcido e desempoeirado. Andou pelo Senado e foi vereador, porque o seu nome foi sempre respeitado, antes e depois da revolta contra os franceses. // Sua ascendência é conhecida, mas pelo lado paterno poucas são as notícias reunidas, porque embora os governantes de outrora costumassem pagar os serviços prestados à nação pelos seus súbditos com alvarás de nomeação para os cargos públicos e estes, por isso, se mantivessem, por séculos às vezes, nas famílias dos serventuários com os antepassados paternos do Dr. Miguel Caetano Torres de Araújo não tiveram muito trabalho as altas esferas governamentais.
         Na verdade, o seu pai, António Xavier Torres Salgado, era o escrivão de um dos Ofícios dos Órfãos da vila e seu termo, precisamente o lugar exercido pelo avô, Belchior Rodrigues Torres, falecido ao findar do outono do 1804. Mas a este, porém, o lugar não lhe adviera por herança de seus antepassados. // Comprara-o, simplesmente, em 1754, a Diogo de Abreu Teixeira e sua mulher, D. Luísa da Silva e Vasconcelos, moradores em Barvães, termo da Barca, por 550$000 réis e para o servir, Belchior Torres, então morador na rua de Baixo, conseguida a provisão, caucionou o lugar com 50$000 réis, dando como fiador António da Silva Soares, da rua da Misericórdia.
         Belchior Rodrigues Torres nascera em Chaviães, gerado em Maria Rodrigues por obra do abade da freguesia, reverendo Pedro Rodrigues Torres. Tanto quanto conheço da sua vida tudo atesta não ter sido criado ao abandono; o padre deu-lhe o nome, incutiu-lhe no espírito de rapaz as verdades eternas da sua religião, abriu o bolso para o colocar e deixou-lhe alguns bens. Belchior era um pequeno proprietário quando casava com Maria Gomes Salgado, irmã do padre Lourenço Alves do Souto Salgado, do lugar de Ferreiros, de Prado. // O seu lar, todo cristão, era escola de virtudes e nessa escola se criaram filhos e filhas. A cada uma destas donzelas deu o tio materno a quantia de cinquenta mil réis em 6/6/1784, pois «se achavam vivendo no estado de solteiras com exemplar virtude de que se acham dignas e merecedoras de todo o amparo para tomar seu estado ou aquele que for mais agrado de Deus.»  // continua...



[1]  Junto dos autos.

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